Para sugerir uma resposta a perguntas tão abrangentes é preciso dar um passo atrás e avaliar o contexto histórico. Convencionou-se utilizar o termo 'poesia contemporânea' para a produção poética do período da redemocratização - da década de 1980 em diante.
Os autores contemporâneos herdaram uma rica e complexa tradição literária - em especial os poetas da chamada fase modernista e das múltiplas correntes que se seguiram.
Durante a fase modernista, inúmeros elementos da poesia foram ao mesmo tempo explorados e questionados. Por exemplo, a forma, incluindo a adoção ou abolição da métrica, da rima ou mesmo do verso, ou o lirismo, variando do mais espontâneo e pessoal ao mais objetivo e conciso.
Se a máquina do mundo tentou se revelar ao poeta, sendo por ele ignorada, o mesmo descaso não se repetiu com a máquina do poema. Os poetas do modernismo e das gerações subsequentes abriram a máquina do poema, identificaram as partes e o todo, a desmontaram, a remontaram, subverteram ou intensificaram seu funcionamento.
Expôs-se os elementos da poesia, agora disponíveis ao manuseio de acordo com o interesse criativo. E expandiu-se o objeto do poema para qualquer tema cotidiano. O poema rígido, o poema sem forma, o poema sem verso, o poema imagem, o lirismo descarado ou objetivado: ao longo do século passado, modificou-se para sempre o ofício poético no Brasil.
Mais poesia, mais livre
O que se produz de poesia na etapa contemporânea vem ocorrendo num momento de maior liberdade na política e na cultura, pós-ditadura militar. O advento de novas tecnologias abriu lugares mais acessíveis à circulação e consumo de objetos culturais - blogs, sites, editoras e revistas literárias digitais, entre outros.
Agora a expressão poética das pessoas encontrava uma gama bem maior de espaços por onde circular, trazendo uma exposição inédita à produção poética. Pode-se dizer também que a poesia brasileira se expandiu, com uma multiplicidade de poetas, temas, perspectivas e experimentações.
A poesia atual dialoga com os autores da tradição literária brasileira - como, para citar uns poucos, Drummond, João Cabral, Cecília, os concretistas e os marginais - de um modo fortemente plural. Além disso, tendo diante de si as entranhas da máquina do poema, os contemporâneos se dispersam por diferentes frentes, propondo uma pluralidade de experiências estéticas.
A reação da crítica literária a esse momento de fragmentação se dividiu. Observam-se aqueles que lamentam a extrema dissipação da produção, apontando uma queda da qualidade. Para eles, a poesia se encontraria em crise. Outros adotam a lente contrária, afirmando o benéfico processo inventivo da poesia, bem como a quantidade de bons poetas.
O discurso da crise é velho. Décadas atrás, Otto Lara Resende afirmava que há muito se dizia que a poesia estava morta. Talvez seja mesmo o campo artístico que mais recebeu atestados de óbito. Otto continuava: na era dos meios de comunicação de massa - ele faleceu antes que a rede mundial de computadores dominasse o mundo -, o poeta se tornava motivo de escândalo porque sofria a solidão da falta de audiência.
É uma questão que trata tanto da poesia quanto dos críticos, das instituições que se ocupam da crítica e do saberes (e poderes) que dominam. Uma discussão que faz parte da produção contemporânea de poesia. Na ausência dum projeto coletivo, a fragmentação, a pluralidade e o questionamento vão formando o projeto dos poetas atuais.
No fundo, o continuísmo
Talvez a maior lacuna da poesia atual seja a ausência de mais audácia em desafiar o cânone e a tradição, tendo em vista avanços em temas como o colonialismo e o feminismo. A produção atual se abstém do intento de questionar e redefinir o cânone poético brasileiro, empreitada a que se dedicaram os modernistas.
A inovação traz consigo esse questionamento do cânone porque ela revela as fraquezas do passado - em especial, muitas vezes, da própria crítica na qual a tradição se sustenta. Por isso a ausência de vozes contemporâneas que joguem pedras nos telhados de vidro da tradição indica que, em meio a tanta diversidade, mantém-se um certo continuísmo.
Parte desse continuísmo se gera em função do novo ambiente literário e tecnológico. Registra-se uma tendência de fechamento de grandes lojas e livrarias. O mercado tradicional se concentra cada vez mais nas grandes editoras. No campo digital, todavia, proliferam as pequenas iniciativas, os escritores independentes, as revistas e endereços eletrônicos de literatura.
Gênero dos menos prestigiados pelo mercado tradicional, a poesia encontrou espaço para crescer nesse campo digital. O preço a pagar, no entanto, foi uma diluição da rede de instituições e meios pelos quais os poetas do presente discutem, interagem e questionam a si mesmos e à sua tradição.
Tome-se, por exemplo, o poema 'No Meio do Caminho', de Drummond, um deboche a um poema de Olavo Bilac. Ele foi publicado na terceira edição da Revista de Antropofagia, centro literário da primeira fase do modernismo que aglutinava autores e leitores. Através desse meio, o poema alcançou grande repercussão que, por parte da crítica, foi em parte bastante negativa.
Seria possível um poema repercutir da mesma maneira hoje? Há uma multiplicidade dos lugares de publicação e leitura de poesia espalhados pelos meios digitais. E não se encontram mais escolas formais estabelecidas, a se tornarem alvos preferenciais, como no caso do parnasianismo atacado pelos modernistas.
Tecnologia do comércio
Outra questão é que as características dos meios digitais se transferem à produção cultural que por eles busca circulação. Quem está na rede deve se submeter às regras e formatos desenvolvidos pelas empresas de tecnologia. Privilegiam-se as funções de produtor, de replicador, de consumidor/audiência.
Reduzido a um gigantesco empreendimento comercial, o espaço digital se organiza mais em torno do engajamento entre produtores e consumidores do que no debate. Nesse ambiente, a criação do objeto cultural se contamina facilmente pela mercantilização, transformando-se em produto a conquistar 'curtidas' de leitores/consumidores ou crescer a quantidade de seguidores.
Pode-se argumentar que essa postura sempre existiu no mercado editorial impresso. Também se pode levantar a ressalva de que grande parte da produção de poesia contemporânea resiste à mercantilização proposta pelos organizadores da rede mundial de computadores.
No primeiro caso, a diferença dos meios digitais em relação às editoras tradicionais se dá no modo agressivo em que os primeiros capturam os indivíduos e os mercantilizam. O que se considerava uma responsabilidade das editoras - a comercialização -, agora se transfere à figura pessoal do poeta. Ele deve comercializar a si mesmo e à sua poesia.
Considere-se as novas profissões que surgiram, como a dos influenciadores. Nelas, fica reduzido ao mínimo a mediação da troca de conteúdo entre o produtor e a audiência. Para angariar leitores, agora cabe ao poeta dominar os mecanismos de funcionamento da comunicação digital, construir uma grande base de seguidores, etc.
É claro que boa parte da poesia produzida e circulada digitalmente escapa a essa lógica. Mas ela busca esse ambiente com o propósito de encontrar leitores, o que realiza pobremente sem a adoção dos métodos disponibilizados pelas plataformas para gerar tráfego. Nesse sentido, o espaço que ocupam será usualmente marginal, desimportante.
Além disso, agora os leitores são mais do que pessoas com um livro na mão: eles se transformaram em consumidores navegando por telas, dotados de uma agência que finge os dotar de poder, ao julgar o que encontram pela frente por meio de curtidas ou não, por comentários, pela pontuação da experiência de consumo.
Possuem uma exposição a textos orientada por algoritmos, que observam e reforçam as regras e normas estabelecidas pelas empresas. É uma interação com os produtores de conteúdo em grande medida fabricada, que os conduz ao fim pecuniário das empresas.
Inócua inovação
Finalmente alcanço o ponto que tinha em mente desde o princípio. A máquina do poema foi exposta pelos modernistas. As novas tecnologias a abduziram. Dessa forma, sem uma postura pessoal crítica ao ambiente digital em que insere sua produção, a liberdade de experimentação da poesia contemporânea fica bastante reduzida.
Experimentações estéticas, diferentes perspetivas, pluralismo de tendências, subjetivismo, eu-lírico confessional, abordagem de questões político-sociais, o emprego de linguagem cotidiana ou de linguagem formal: a fragmentação é um sintoma do momento atual.
Um momento em que ameaçadoramente recrudesce a desinformação e o autoritarismo, o individualismo extremo e a despolitização, os quais possuem como um dos principais vetores justamente as empresas de tecnologia.
Falta aos autores contemporâneos visão e organização coletivas. Aqui, deve-se dar razão à uma parcela dos críticos. O individualismo exacerbado enfraquece a possibilidade de critica dos poetas, a possibilidade de criar, de gerar polêmicas e questionamentos a respeito da tradição e dos cânones, bem como de seu tempo, dos meios a seu dispor, do fazer poético.
É preciso recuperar o protagonismo que apenas a comunhão em grupo oferece. Poetas, organizem-se!
Crítica Literária
Nenhum comentário:
Postar um comentário