Em 1958, um repórter novato do jornal paulista Folha da Noite visitou a favela de Canindé, às margens do rio Tietê, para uma matéria sobre o uso de um parque infantil do lugar. Lá, conheceu uma moradora, mãe solteira de três filhos de pais diferentes, que amava livros e amava escrever.
O repórter decidiu mudar o foco da reportagem. Em vez do uso do parque, abordar a vida das pessoas que lá viviam. Convidado pela mulher, o repórter foi apresentado ao material escrito por ela em cadernos e papéis que ela catava pelas ruas. Entre os diferentes textos, ele se impressionou com o diário sobre o cotidiano de Canindé.
O encontro alterou a vida de ambos. O repórter, Audálio Dantas, escreveu uma matéria cujo personagem principal era a mulher, Carolina Maria de Jesus, incluindo um pequeno trecho de seu diário. A matéria teve grande repercussão - os brasileiros que liam jornais desconheciam a voz e o cotidiano de pessoas como ela.
Um ano depois, em seu novo emprego na revista O Cruzeiro, um dos maiores veículos da imprensa nacional, Audálio publicou outra matéria, dessa vez com inúmeras entradas do diário de Carolina. Por meio de um amigo, o repórter conseguiu convencer uma editora paulista a publicar os diários em livro.
Com o título 'Quarto de Despejo', o livro saiu em 1960 sem grandes pretensões. Em um país oligárquico marcado pela desigualdade e pela discriminação racial, 'Quarto de Despejo' se tornou um best seller nacional e internacional. A obra foi traduzida para 13 idiomas e vendida em mais de 40 países.
Estrondoso, o sucesso do livro de Carolina foi também meteórico. Pouco tempo depois, a autora e sua obra desapareceriam da memória brasileira.
Obra, realidade e pessoa
'Quarto de despejo' talvez seja a obra mais ímpar da literatura brasileira. Um livro de exceção, por meio do qual ocupou o espaço público a voz de uma pessoa antes invisível e silenciada. Um livro em que se fundem, de uma forma incomum, autora, história e narrativa.
Trata-se de uma obra de ambiguidade que aciona, com tensões, a pessoa subjetiva e o texto material, a exclusão e os privilégios, a arte e o preconceito. Seu lançamento foi antecedido pela retórica que pinta Carolina como a favelada que, pela capacidade de escrever, escapa à própria sina.
Na sociedade brasileira da década de 1960, a habilidade de escrever era controlada pelo grupo instruído, de maior poder aquisitivo. O analfabetismo alcançava cerca de 40% da população, sendo usualmente acompanhado pela pobreza e pela discriminação. Considerados ignorantes, aos analfabetos se negava o direito de votar.
Carolina reproduz essa mesma visão em relação aos demais moradores de Canindé. A arte, contudo, a impulsiona em direções contestadoras desse imaginário que naturaliza a segregação. O diário também expõe considerações sobre a sua condição de mulher, de pessoa pobre, de pele preta.
Alguns estudiosos identificam que o mesmo imaginário conduziu os editores dos manuscritos de Carolina. A edição, não intencionalmente, propunha-se a retratar os favelados a partir das palavras de um deles.
Nesse sentido, a ênfase se deu no caráter 'sociológico' das condições materiais e de vida daquelas pessoas. Mas de modo a estigmatizar a noção de favelado - generalização a que se reduzia um grupo diverso de pessoas cujo principal ponto em comum era a precária localização e condição de moradia.
Exemplo se encontra na decisão de manter erros ortográficos e gramaticais da autora, como indicadores de autenticidade. Carolina, todavia, menciona diversas vezes como saber ler e escrever a distinguia dos demais moradores de Canindé. Ela também ativamente submeteu seus escritos a jornais e revistas com o objetivo de ser publicada.
A identificação de Carolina com as letras (no sentido erudito, das normas formais, e que abrangia também seu hábito de leitura) consistia num dos principais pontos onde residia o seu orgulho. O outro se originava do fato de ser ela uma mulher independente.
Erros comezinhos e banais não correspondiam a algo intencional de Carolina. O papel da edição inclui, em conjunto com o autor, identificá-los e revisá-los. Mantê-los no livro acaba desmerecendo a trajetória da autora que, contra as circunstâncias da época e de sua condição social, conquistou a habilidade de ler e escrever.
Documento ou literatura?
A visão sociológica afetou a recepção crítica do material produzido por Carolina. Estavam diante do texto de alguém de quem não se esperaria texto algum. Poderia uma favelada conceber uma obra literária, intelectual?
Mais uma vez, a fusão de autora e obra condicionava a história do livro. A resposta da crítica variou. Muitos ressaltaram o valor documental, recusando uma análise literária. Se, por um lado, reconhecia-se o interesse dos temas e da realidade descritos por Carolina de Jesus, por outro lado a obra estaria vazia de qualidade literária, ao não atender aos critérios do 'erudito'.
Pondere-se que tal julgamento, esvaziando a obra de Carolina da possibilidade de literatura, ocorria mais de uma década após a publicação do 'Diário de Anne Frank'. De grande repercussão mundial, o livro de Anne Frank marcou o gênero dos diários na literatura mundial, gênero ao qual pertence 'Quarto de Despejo'.
A resposta de muitos críticos, portanto, através de uma mistura de preconceito e arrogância mais ou menos explícitos, era de que a 'favelada' poderia descrever fatos, mas não criar. Os moradores de Canindé estavam socialmente desumanizados - feito animais, diria Carolina. Assim desumanos não teriam condições de fazer literatura.
Uma versão mais extremista dessa visão preconceituosa ganhava expressão no argumento de alguns críticos literários. Eles afirmavam que Carolina de Jesus não seria a autora do livro. Ela teria sido usada, enquanto artimanha de divulgação, como uma espécie de 'laranja' pelo jornalista Audálio, a quem apontavam como o verdadeiro escritor.
Existiu também uma recepção positiva de parte da crítica. No entanto, prevalecia o viés 'sociológico'. A obra equivaleria à janela de um recinto, pela qual os leitores poderiam ver o comportamento de seres exóticos. Carolina se mantinha do lado de dentro.
A autora também reproduzia essa visão 'sociológica', estigmatizada, em seu texto. Estão presentes a referência pejorativa às pessoas como 'favelados', a caracterização da favela como espaço eminentemente negativo, ou das mulheres como inferiores.
A escrita (a arte), no entanto, ao resgatar em parte a humanidade de Carolina pelo ato criativo, introduziu quebras nesse modo de identificação. A autora reflete sobre as dificuldades associadas ao fato de ser mulher, ela aponta o preconceito contra pessoas de pele preta, ou chega a intuir como a destituição a que está submetida consiste, como tudo o mais na realidade humana, em um processo social, que emerge do modo coletivo de organizar a vida, sendo que o esforço individual pouco adianta para superá-la.
Tão rapidamente quanto os holofotes recaíram sobre Carolina de Jesus, dela eles se distanciaram. E sem a chancela de obra literária, a autora - peixe fora d'água no ambiente social privilegiado - enfrentou o ostracismo.
O fio de uma faca
Em décadas recentes, um processo de renovação de quadros no espaço acadêmico ingeriu sangue novo e arejou os ares. Tiveram início pesquisas e revisões da história literária nacional, do cânone e, nesse bojo, revisitou-se Carolina Maria de Jesus.
Em 'Quarto de Despejo', somos transportados para dentro de uma realidade de luta constante pela sobrevivência, rasgada por episódios de violência, de solidariedade, poucos de alegria, de humilhação e desespero. E para narrar os acontecimentos, Carolina cria uma literatura da urgência, em que impera o imediato das demandas básicas da vida.
Há uma coincidência entre 'Quarto de Despejo' e o 'Diário de Anne Frank' que auxilia na compreensão dessa urgência. Ambos começam numa data de aniversário. Mostram os dois extremos da mesma complexidade social.
É o dia do aniversário de Anne e ela discorre sobre os confortos de sua residência, as flores recebidas, os inúmeros presentes que ganha - listando alguns deles. Retrata os privilégios de uma família de recursos em uma cidade européia.
O contraste com 'Quarto de Despejo' se faz soberbo. É o dia do aniversário de Vera, filha de Carolina. A menina desejava um par de sapatos, mas não havia dinheiro. A solução foi dada pelo acaso. Carolina encontrou sapatos usados no lixo, lavou-os e remendou-os. Eis o presente de aniversário possível.
A análise decolonial nos lembra que os dois extremos estão ligados. A história da riqueza acumulada pela Europa se viabilizou (ainda se viabiliza) por meio da exploração de outros territórios, portanto da história de pobreza que assola países periféricos como o Brasil. A estigmatização dos destituídos funciona como subterfúgio simbólico de disfarce e legitimação desse processo.
Na situação de conforto, a narração atende ao erudito. Em 'Quarto de Despejo', por sua vez, surge uma dicção despida, de frases curtas, diretas, econômicas. De um ritmo geralmente apressado, em uma narrativa regida por verbos e ação, condensando fatos ou histórias pessoais numa apresentação direta, curta, no fio de uma faca.
Leitura obrigatória
Assim, o livro de Carolina avança apunhalando o leitor, ora num corte profundo, retratando eventos de extrema vulnerabilidade, inquietantes, ora sustentando a lâmina no ar, quando se introduzem reflexões de índole política, social, ontológica ou então um lirismo ingênuo, ora em rasas perfurações de uma contabilidade de tostões em que se equilibra a tênue fronteira entre o bem-estar mais superficial e a fome desesperadora.
Essa contabilidade permeia todo o livro. Repete-se. Insiste. Redunda. Por que essa espécie de obsessão em especificar a todo momento as miúdas quantias que se movimenta no cotidiano? Gastou-se tantos trocados ali, e depois, e então, e ganhou-se tantos tostões, vendeu-se o catado, outros tostões, e de novo, e de novo?
Chega ao ponto de incomodar, de degradar a qualidade literária - na expectativa erudita - da obra, tornando-se um elemento negativo do estilo, que pode até levar a um certo cansaço do leitor. E isto constitui um ponto brilhante e espontâneo da escrita de Carolina, quando se transfere ao texto a estafa que tal contabilidade impõe à vida ordinária da autora.
Precariedade e urgência se traduzem de outra maneira no texto de Carolina. Numa rotina em que se vende o almoço para pagar a janta, extirpa-se a riqueza de experiências pessoais, achatada no tom monotônico da labuta incessante pela sobrevivência. Tal homogeneização aparece na narrativa como uma compressão de fatos ou elementos num fluxo comum.
A literatura peculiar de 'Quarto de Despejo' não oferece dificuldades ao leitor, embora não seja um livro de fácil leitura. Ele possui uma riqueza única, composta simultaneamente pelo texto dos diários e pela autora e sua história pessoal - na qual se inclui a história do próprio objeto-livro.
Nessa fusão do pessoal, do social e do literário se forma um monumento artístico. A leitura e estudo dele deveria ser obrigatória. Assim como a escrita operou para o resgate de Carolina, o monumento erigido por ela poderia contribuir para o Brasil recuperar um pouco de sua humanidade.
Crítica Literária
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