A trajetória de Coutinho se alinhava, de início, a uma corrente chamada de impressionista, herança do século dezenove, na qual se explorava as circunstâncias da vida do autor para compreender sua obra.
Essa corrente buscava no modo de viver, no período histórico, em características pessoais do autor explicações para o texto produzido. Enquanto ligado a essa corrente, Afrânio Coutinho endossou pseudo-teorias vigentes a respeito de raça, um tipo de discurso que naturalizava privilégios e legitimava preconceito e racismo.
Uma temporada de trabalho nos Estados Unidos expôs Coutinho a outras correntes de crítica literária. Nelas se destacava a análise da expressão estética da obra, o desenvolvimento interno, repudiando-se nexos deterministas de elementos 'biológicos', sociais ou psicológicos.
Uma obra se formava de qualidades estéticas. Nesse sentido, a crítica deveria se debruçar sobre aspectos formais, como, por exemplo, técnica de linguagem, enredo e ordem da narrativa, apresentação de personagens, deixando as questões sócio-culturais ligadas ao autor ou autora como elementos secundários, que talvez exercessem alguma influência.
Transferia-se o individualismo atomista para o material literário. Livros seriam independentes, isolados, com qualidade intrínsecas autônomas da cultura coletiva.
As propostas de Coutinho geraram polêmica entre outros críticos da época. Em alguma medida, devido à forte filiação ao determinismo social e biológico na interpretação literária. Mas também porque, nos jornais da época, era comum a crítica literária de rodapé.
Breve coluna de jornal, na crítica de rodapé alguém se colocava na posição de crítico. Sem qualquer formação específica, os críticos incluíam advogados, professores, jornalistas assumindo um lugar privilegiado: julgavam e selecionavam, segundo impressões pessoais, os livros recentemente publicados.
Tal julgamento se baseava em reações imediatas, no contato com a obra. Um campo fértil às idiossincrasias e preconceitos individuais.
O trabalho de Afrânio Coutinho alteraria os rumos da análise literária no país. Ele advogou pelo aprimoramento da crítica a partir das universidades, nas quais se formariam os críticos, um avanço para a profissionalização da atividade.
Um dos principais resultados se deu pela publicação de 'A literatura no Brasil', sob a direção de Coutinho, elaborada coletivamente por cerca de 50 especialistas. Compêndio dividido em três partes, a obra foi um marco, apresentando um panorama da literatura brasileira do passado até o presente.
A crítica do modernista Mário
Usualmente, representa-se Afrânio Coutinho como uma figura inovadora no campo da crítica literária nacional. Se ele deu contribuição decisiva para abandonar uma perspectiva determinista, não rompeu de forma radical com esse pensamento de matriz colonial, proveniente do estrangeiro.
Compare-se as perspectivas da crítica estética introduzida por Coutinho com as do principal agitador do movimento modernista: Mário de Andrade.
Em 1937 - quando Coutinho ainda era bibliotecário na Faculdade de Medicina -, Mário expunha uma visão mais equilibrada sobre a individualidade do autor. Tema comum aos escritores da época, propunha o rompimento com práticas literárias anteriores, pelas quais um autor se filiava a uma escola literária (como o romantismo ou o parnasianismo).
Contra essa filiação a um modelo, contra a proposta de reprodução de formas do passado, os modernistas advogavam pela liberdade individual na criação. O autor deveria explorar sua personalidade tanto no diálogo com diversas fontes - agora populares e da tradição - quanto na construção do material escrito.
Mário, no entanto, reconhecia a dívida com a cultura coletiva a partir da qual ganham expressão os indivíduos. A criação livre, autônoma e isolada "é uma quimera", afirmava Mário, "porque ninguém é feito de nada nem é si mesmo apenas".
Se, como os demais de sua geração modernista, Mário perseguia a ideia da personalidade do autor como elemento criativo, era para que o autor tomasse consciência crítica da elaboração do texto. Não que se fosse dispensar a imitação e a cópia de modelos, mas deveriam produzir um resultado distinto, original, como na técnica da bricolagem.
Ao mesmo tempo, Mário ressaltava que tanto a arte quanto o humano - seus modos de ser, sentir, agir etc - ganham existência pela coletividade, pela cultura. Tanto a arte quanto o humano, de um passado longínquo, vinham desaguar no presente em que vivemos e somos, em que, pelo trabalho pessoal do autor, textos vão sendo herdados, mesclados, copiados, embaralhados em uma produção submetida a normas, instituições, comportamentos socialmente estabelecidos.
Além da exaltação da personalidade, Mário buscava - com suas limitações - uma literatura menos elitista e mais democrática e humana. Como seus pares modernistas, alertava para a ingenuidade da absorção de influências estrangeiras. O que vinha de fora deveria ser canibalizado, transformado, para enriquecer o fazer local.
Tão importante quanto o cânone era a expressão literária popular. O autor, em vez de criar isoladamente, imaginando embelezamentos em forma de texto, deveria mergulhar na diversidade de práticas e expressões brasileiras, misturá-las à bagagem literária do passado. Fundi-las.
Criar representava, portanto, dar vazão a essa riqueza cultural brasileira - como fizeram Mário, Manuel Bandeira em sua poesia e, décadas mais tarde, João Guimarães Rosa.
Modernismo pela metade
Se a mudança da perspectiva crítica de Afrânio Coutinho - de um determinismo colonialista, de cores eugenistas, para uma consideração estética e mais 'técnica' - representou um avanço, era menos radical do que a visão de Mário de Andrade.
Verificou-se, desde então, uma brecha entre o fazer literário e sua crítica. No primeiro caso, os agitadores da Semana de Arte Moderna conseguiram expandir a prática literária, abrindo caminhos a serem explorados por autoras e autores de gerações posteriores.
No campo da crítica, contudo, o conservadorismo permaneceu hegemônico. Ecos das ideologias de séculos passados se reproduziram nas vozes de críticos, bem como preconceitos e racismo. Preservou-se a visão da erudição como virtuosismo, do autor como gênio criativo excepcional - separado da vida popular e ordinária.
Além disso, não se questionaram os vieses da postura 'técnica' inaugurada por Coutinho que, no fim das contas, atritava-se com a bandeira de democratização de Mário de Andrade.
Esse autoritarismo promoveu, por exemplo, o silenciamento de autoras mulheres do passado. Sem sequer merecerem breves análises estéticas, essas autoras estiveram fora das histórias literárias produzidas pela crítica, injustiça que só recentemente começou a ser reparada.
A exclusão de mulheres do cânone ocorreu por outros motivos que não estéticos, expondo o telhado de vidro da abordagem 'técnica'.
Na segunda metade do século passado, importando um conceito estrangeiro, a crítica literária brasileira decretou o falecimento do modernismo. Ele havia nascido, crescido em adulto responsável, envelhecido e de velhice bateu as botas. A partir da década de 80, alegava-se que a literatura nacional havia se tornado pós-moderna. Concluía-se então a fase anterior
Assim morto e enterrado, silenciavam-se igualmente a busca por uma arte mais democrática, mais humana. Relegava-se a segundo plano a intuição antropófaga contra o colonialismo. O vigor de uma literatura imersa na diversidade popular, geográfica, erudita e social.
E o país retomou o ranger de suas velhas estruturas entrando no século vinte e um.
É certo que algo pode acabar sem ter alcançado sua plenitude. Não é o caso do modernismo: incompleto, ele ainda pode ser aprofundado. Feito alguém que sofreu infarto agudo do miocárdio, o modernismo brasileiro aguarda quem lhe venha dar um tratamento de choque e daí fazer-lhe bater outra vez o coração.
Crítica Literária
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