Escritores brasileiros: Lima Barreto - Escritor CF Scuo
Ana Clara MeloEscritores brasileiros

Escritores brasileiros: Lima Barreto

O mesmo de sempre.

Para entender o Brasil do presente, há um escritor que precisa ser lido. Ele viveu no início do século vinte, experimentou a abolição da escravatura e a transformação da monarquia em república.

Descendente de escravos, ele morava na capital federal, o Rio de Janeiro. Testemunhou que a mudança de regime manteve os privilégios de alguns estratos sociais, bem como em nada alterou a aguda desigualdade. Seu nome? Lima Barreto.

Autor de uma obra variada, com artigos, contos ou romances, e uma visão crítica da sociedade da época, Lima Barreto nos apresenta um Brasil do passado que insiste, resiliente, em se reproduzir até hoje.

Descendente de escravos


João Henriques, pai de Lima Barreto, era filho de uma escrava com um madeireiro português. A mãe, Amália Augusta, por sua vez, era filha de uma escrava alforriada. O pai logrou seguir a carreira de tipógrafo. A mãe se formou professora e dirigiu um colégio para moças, mas faleceu, vítima de tuberculose, com os filhos ainda pequenos.

O fim do Império levou consigo o emprego de tipógrafo de João Henriques. A fim de manter o sustento dos filhos, empregou-se como administrador da colônia de alienados da Ilha do Governador.

Em uma sociedade construída pela escravatura, Lima Barreto seguiu os passos de seus pais. Explorava as brechas existentes, em especial através da educação e da formação técnica, para conquistar uma profissão.

O pai adoeceu de loucura, sendo obrigado a se aposentar. Recaiu sobre Lima Barreto a responsabilidade de arrimo da família, custeando o tratamento do pai e os estudos dos irmãos. Encontrou seu ganha-pão quando prestou concurso e foi contratado como amanuense na Secretaria da Guerra. Exerceria o funcionalismo público até o final da vida.

O envolvimento com a literatura se inicia ainda na escola, quando Lima contribuiu para a imprensa estudantil. A estabilidade do emprego deu as bases para seu engajamento com a literatura, escrevendo romances e outros textos. Ele também perseguiu uma carreira complementar junto a jornais. 

Mulato, Lima Barreto experimentou o preconceito. As adversidades enfrentadas o motivaram a produzir, em suas próprias palavras, uma literatura militante, crítica da realidade social do Brasil do início do século vinte.

Nem aí, nem aqui


Uma das características da vida e da obra de Lima Barreto, segundo a crítica, trata-se da ambiguidade. Ela apareceria na escrita em forma de pequenas irregularidades estilísticas, com trechos de alterada qualidade estética.  

O leitor atento facilmente percebe esses soluços durante a leitura, em especial a repetição de passagens que, dada a semelhança, soam redundantes e desnecessárias. Isso constitui, contudo, um tropeço menor.

Ambiguidade também vivenciava Lima Barreto em relação ao universo literário - nele almejava adentrar, candidatando-se seguidamente a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, enquanto, ao mesmo tempo dele, da Academia desdenhava.

Ele residia em um subúrbio do Rio de Janeiro e de lá extraía material para seus romances, por exemplo, no caso de um de seus livros mais famosos, 'Triste Fim de Policarpo Quaresma'. Apesar de morador do subúrbio, mantinha um distanciamento cultural de seus vizinhos.

O auge da ambiguidade se instaurou no próprio âmago de Lima Barreto. Não exitava em frequentar a discussão pública em textos críticos, às vezes polêmicos, enquanto pessoalmente sofria a solidão. Lutava para ocupar seu lugar na sociedade, enfrentando o preconceito que, em direção oposta, tentava o expelir - e que ele retratou em inúmeros momentos de sua obra.

Nesse existir em pêndulo, o escritor caiu vítima do álcool. Entendiado, melancólico, deprimido, a condição pessoal de Lima se deteriorou, e ele teve duas passagens no Hospital de Alienados para se submeter a tratamento.

Vanguardista


Lima Barreto consistia em um meticuloso pesquisador da realidade ao seu redor. Era - como outros escritores em tempos diferentes - colecionador de material que posteriormente aproveitaria na escrita. Reunia em cadernos recortes de jornais a respeito de múltiplos assuntos, ajuntando ocasionalmente alguma anotação sua.

O período inaugural da república se notava pelo ufanismo e por um fervor nacionalista. A república se inaugurara pelos militares na condução da política, recorrendo à estados de sítio e autoritarismo. Ainda fresca na memória estava a violência do governo de Floriano Peixoto, marcado pela Revolta da Armada e do conflito civil entre federalistas e republicanos no Rio Grande do Sul.

A substituição da estrutura monarquista pelo grupo político e militar dos republicanos encontrava justificativa em um tipo de discurso: a fundação - ou refundação - do país. Sob um verniz científico, os produtores intelectuais do período defendiam o nacionalismo. Propunham projetos de progresso da nação pelas vias, por exemplo, do sanitarismo ou da eugenia e branqueamento da população.

Através de sua obra, em diálogo com o material colecionado, a voz de Lima Barreto trouxe uma visão crítica singular contra a corrente do discurso em voga. Ele retratou questões sociais de privilégio e de exclusão que se perpetuavam. Questões varridas para debaixo do tapete pelo mantra da pátria abençoada por deus, rica em recursos naturais. 

Retratou o cotidiano e descreveu o imaginário social da república recém-inaugurada. Recorreu à sua habilidade em criar personagens de tipos sociais diversos. Em tons satíricos abordava os grupos mais favorecidos - profissionais liberais, funcionários públicos, militares.

Igualmente criava personagens de grupos menos favorecidos. Além de revelar a desigualdade da sociedade brasileira, Lima Barreto explorava questões psicológicas de seus personagens, transportando a trama para um mergulho em impasses, em dilemas pessoais. 

O álcool, a depressão, seu embate com a sua época anteciparam a morte de Lima Barreto. Ele faleceu aos 41 anos.

Escrevendo em um período anterior ao movimento modernista, Lima Barreto introduziu em sua escrita elementos vanguardistas. A tal ponto que seus livros nos retratam não somente o passado, mas o Brasil atual, talvez daquele vizinho do prédio. Ou mesmo da pessoa que nos encara no espelho. 

Mais para o mal do que para o bem, certas coisas não mudam.



Por Ana Clara Melo
Crítica Literária

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